Assecor

Jabuticabas tributárias e a desigualdade no Brasil

Por Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair

A surpreendente repercussão dos estudos do economista francês Thomas Piketty e do seu best­seller "O Capital do Século XXI" contribuiu para renovar o debate sobre os papéis do imposto de renda não só como ferramenta redistributiva, essencial na construção do Estado de bem­estar social das economias desenvolvidas, mas também como instrumento de cidadania quando seus registros de informação são apresentadas de modo transparente à sociedade e permitem diagnosticar melhor suas desigualdades e mazelas sociais. O Brasil ainda engatinha na tarefa de tornar o imposto de renda um tributo progressivo e abrangente, mas felizmente tem avançado no quesito transparência.

 

Os dados das declarações de imposto de renda das pessoas físicas entre 2008 e 2014, recentemente divulgados pela Receita Federal do Brasil, são um presente à democracia porque nos ajudam a conhecer melhor nossa distribuição de renda e riqueza e, ao mesmo tempo, o efeito concentrador de algumas peculiaridades (ou jabuticabas) do nosso sistema tributário. Vamos a uma síntese desses dados:

 

1­ Somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. O topo da pirâmide social, formado por 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos (ou R$ 1,3 milhão anuais), totalizou rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2 trilhão em 2013. Isto equivale a uma renda média individual de R$ 4,17 milhões e uma riqueza média de R$ 17 milhões. Essa minúscula elite (0,3% dos declarantes ou 0,05% da população economicamente ativa) concentra 14% da renda total e 22,7% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Se adicionarmos a renda e o patrimônio dos que ganham acima de 40 salários mínimos mensais ou R$ 325 mil anuais (0,5% da população ativa), já chegaremos a 30% e 43% dos totais.

2­ Nossos extremamente ricos apresentam elevadíssima

proporção de rendimentos isentos de imposto de renda. Da renda desse estrato, apenas 34,2% são tributados (incluindo aqueles rendimentos tributados exclusivamente na fonte) e os outros dois terços ­ R$ 196 bilhões com média individual de R$ 2,7 milhões ­

 

são isentos de imposto pela nossa legislação. Este percentual de isenção, em relação à renda, é de 23,8% para os demais declarantes e de apenas 8,3% para a imensa maioria, aqueles que receberam abaixo de cinco salários mínimos mensais (ou R$ 40,7 mil anuais) em 2013.

 

3­ O topo da pirâmide social paga menos imposto, proporcionalmente à sua renda, do que os estratos intermediários. Em média, o declarante do estrato extremamente rico paga 2,6% de imposto sobre sua renda total (ou 6,4% com estimativa de retenção exclusiva na fonte), enquanto o estrato intermediário com rendimentos anuais entre R$ 162.720 e R$ 325.440 (20 a 40 salários mínimos) paga 10,2% (11,7% com retenção exclusiva na fonte). Ou seja, nossa classe média alta ­ principalmente a assalariada ­ paga mais imposto do que os muito ricos.

4­ Essa distorção se deve principalmente a uma jabuticaba da legislação tributária brasileira: a isenção

de lucros e dividendos pagos a sócios e acionistas de empresas. Dos 71.440 super ricos que mencionamos,

51.419 receberam dividendos em 2013 e declararam uma renda média de R$ 4,5 milhões, pagando um imposto de apenas 1,8% sobre toda sua renda. Isso porque a renda tributável desse grupo foi de R$ 387 mil em média em 2013, a renda tributável exclusivamente na fonte R$ 942 mil e a renda totalmente isenta R$ 3,1 milhões.

A justificativa para esta isenção é evitar que o lucro, já tributado ao nível da empresa, seja novamente taxado quando se converte em renda pessoal, com a distribuição de dividendos. Antes que o leitor formule sua opinião derradeira sobre essa questão, uma informação adicional: entre os 34 países da OCDE, que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado, apenas três isentavam os dividendos até 2010. México retomou a taxação em 2014 e República Eslováquia em 2011, por meio de uma

contribuição social. Restou somente a Estônia, que, assim como o Brasil, isenta totalmente os dividendos.

Em média, a tributação total do lucro (integrando pessoa jurídica e pessoa física) chega a 43% nos países da OCDE (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos Estados Unidos). No Brasil, com as isenções de dividendos e outras jabuticabas tributárias (como os juros sobre capital próprio, que reduzem a base tributável das empresas), essa taxa cai abaixo de 30%, embora formalmente a soma das alíquotas de IRPJ e CSLL seja de 34%. Basta analisar alguns balanços de grandes empresas brasileiras

 

 

Em resumo, o Brasil possui uma carga tributária equivalente à média dos países da OCDE, por volta de

35% do PIB, mas tributa muito pouco a renda, principalmente dos mais ricos, e sobretaxa a produção e o consumo. E refletir sobre essa distorção é fundamental num momento em que o ajuste fiscal exige escolhas e em que as políticas distributivas por meio do gasto público mostram sinais de esgotamento.

 

A reintrodução da tributação sobre dividendos, aos moldes do que ocorria até 1995 no Brasil, ajudaria a reduzir as desigualdades de renda no país e contribuiria muito com o ajuste fiscal (cerca de R$ 50 bilhões de receita adicional), com a vantagem de não afetar tanto a já combalida economia brasileira como outras alternativas de aumento de carga tributária. Isso porque a renda de dividendos está concentrada no topo da pirâmide e sua tributação não atingiria os investimentos das empresas, mas apenas uma pequena fração da poupança das famílias mais ricas.

 

Enfim, o debate está aberto: vamos continuar mantendo jabuticabas tributárias?

 

**Sérgio Wulff Gobetti é doutor em economia e pesquisador do Ipea

**Rodrigo Octávio Orair é mestre em economia e pesquisador do Ipea

 

Fonte: Valor Econômico 

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